Brasil não está pronto para erradicar miséria, diz pesquisador
Renato Dagnino, especialista em Política Científica
e Tecnológica e Planejamento em Ciência e Tecnologia, com Doutorado e
Pós-Doutorado na área de ciência, tecnologia e inovação. Dagnino fez sérias
críticas ao modelo de Combate à Pobreza Extrema, adotado pelo Governo Federal.
O pesquisador é antigo membro do PT, histórico lutador e militante de esquerda.
Perseguido pela ditadura militar, se exílio no Chile onde militou no movimento
de esquerda do Chile.
Recentemente foi cotado para ocupar uma secretaria do
MCT, a Secretaria de Inclusão Social, mas essa indicação ficou não se
concretizou e continua como professor da UNICAMP e da Universidade Federal da
Bahia. Na realidade as críticas do Dagnino aos programas de erradicação da
pobreza vêm ao encontro das críticas que muitos outros especialistas já tinham
feito.
Essas
críticas partem do próprio governo. Não se trata de continuar aprofundando o
modelo de combate à pobreza, já existente, é necessário oferecer novas saídas
para eliminar de vez a pobreza do Brasil.
A idéia
de que "um País rico é um país sem pobreza" é correta. A Bolsa
família é uma alternativa, mas o objetivo do programa é interromper o círculo
perverso de "pai miserável, filho também miserável". O Programa devia
tirar o filho da pobreza e melhorar as condições do pai para sair da pobreza e
deixar de depender eternamente de um programa de transferência de renda Mas,
leia a seguir as principais críticas do Dagnino sobre o combate à pobreza da
Presidenta e também sobre a política de inclusão social do governo.
O Brasil não está pronto para erradicar a miséria nem para absorver a
chamada nova classe média, avalia Renato Dagnino, professor titular no
Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp.
De acordo com ele, falta ao país o conhecimento tecnológico e científico
adequado para a inclusão social ocorrer de forma sustentável social e
ambientalmente. Por outro lado, Dagnino vê na erradicação da miséria uma
"oportunidade de ouro" para repensar o tipo de conhecimento produzido
no país.
A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha. (os parágrafos em destaques são nossos).
Folha - De que maneira a ascensão social ocorrida durante o governo
Lula interfere na política de ciência e tecnologia do Brasil?
Renato Dagnino - De uma forma geral, a gente tem que pensar a
política técnico-produtiva. Hoje, muitos produtos já não são encontrados
no comércio, justamente pela ascensão desse grupo, que tem suas
demandas de consumo. Além disso, frequentemente os produtos que demandam
não são os que normalmente estão à venda. Existem tipos de produtos que
são orientados a outro segmento de consumo. Pensando de uma forma
global, o país deveria fazer um esforço para se antecipar a essa demanda
e prevenir desequilíbrios.
Demandas de que tipo?
Por exemplo, necessidades básicas: habitação, esgoto, água potável,
transporte etc. Toda essa parte que tem a ver com o gasto público, com
uma obrigação do Estado. Existe aí forte demanda reprimida. Como vamos
resolver esse tipo de problema com as tecnologias disponíveis, que foram
pensadas como solução para uma situação totalmente diferente da
brasileira? Caso se tente resolver muitos desses problemas com a mesma
tecnologia usada nos países desenvolvidos, o custo será astronômico, e o
impacto ambiental, desastroso. Além disso, estaremos usando tecnologias
que não correspondem à escassez e abundância relativa de fatores. Essas
tecnologias, por terem sido desenvolvidas em países avançados, empregam
muito menos mão de obra do que poderiam empregar. Por uma razão
simples: a mão de obra lá é cara. Aqui, a gente precisa de muita mão de
obra, de preferência em coisas que possam ser construídas, desenvolvidas
ou implantadas a partir da organização dos próprios trabalhadores, sem a
necessidade de grandes empresas.
Por quê?
Quando o governo gasta recursos com empresas, utilizando seu enorme
poder de compra para atender a essas necessidades dos cidadãos, uma
parte do gasto é lucro da empresa. Há uma ineficiência nesse processo,
pois o que chega na classe mais pobre é menos do que poderia chegar. Ou
seja, o governo gasta um dinheiro razoável nessa tentativa de amenizar a
miséria, mas deixa de aproveitar o seu poder de compra, que é muito
grande, para alavancar esse processo.
Há alguma diferença entre os governos FHC, Lula e Dilma no que diz respeito às políticas de ciência e tecnologia?
Não. Na verdade, o que os dados disponíveis mostram é que vem diminuindo
o gasto percentual das empresas em pesquisa e desenvolvimento. Isso é
totalmente esperado. Trata-se de uma questão estrutural. Existem três
bons negócios com tecnologia: roubar, copiar ou comprar. Desenvolver, só
em último caso.
Se é mais racional que o empresário compre tecnologia, o Estado precisa ter um papel mais ativo?
Não adianta. Se somos um país capitalista, o Estado nunca terá condições
de intervir para regular o mercado a ponto de "obrigar" um empresário a
fazer algo que ele não queira. Em especial algo como desenvolver
tecnologia.
E qual é a solução?
No caso brasileiro, não tem solução, e esse é o problema que o pessoal
não entendeu ainda. Costuma-se dizer que o empresário brasileiro é
"atrasado", que falta "clima de inovação", que ele tem que ser "mais
ousado", mais "empreendedor". Ora, se tem empresário competente no
mundo, é o brasileiro. E digo isso como toda a sinceridade. Basta ver o
dinheiro que ganha, a taxa de lucro que tem num país como o Brasil.
Agora, o processo de erradicação da miséria é uma oportunidade de ouro.
Esse processo desvela uma enorme demanda reprimida por conhecimento. E
não só conhecimento desincorporado, mas incorporado em bens, serviços,
capacidade produtiva. Costumo dizer que 50% da população brasileira está
fora do Brasil. Para fazer um país onde caiba todo o povo brasileiro em
termos de consumo, de satisfação de necessidades de todo tipo, é
preciso construir outro país do tamanho do que já existe. Não dá para
fazer isso sem planejar antes. Está na hora de pensar esse processo de
construção do Brasil que a gente quer, e isso não está sendo feito.
Não cabe ao governo o papel de fomentar essa discussão?
No caso da política de ciência e tecnologia, temos uma situação anômala.
Em todas as políticas públicas, os atores sentam à mesa com seus
projetos. Quando se discute a política salarial ou de emprego, por
exemplo, empresários e trabalhadores aparecem claramente em áreas
radicalmente opostas. Na ciência e tecnologia, porém, o projeto político
não aparece. O que aparece são os mitos: neutralidade, determinismo, a
ideia de que ciência e tecnologia sempre são boas e que o problema é o
uso que vai se fazer. E há um complicador. Há 50 anos fala-se em
participação pública na ciência. É um discurso politicamente correto,
mas as pessoas parecem esquecer em que país estão vivendo. Por mais
politicamente correto que seja, não posso concordar com isso. Qual a
saída? Eu acho que é propor uma discussão dentro da comunidade de
pesquisa. Explicitar essa esquizofrenia. A minha expectativa é que haja
uma cisão dentro da comunidade de pesquisa, como existe em qualquer
outra área quando o projeto político consegue se manifestar. Porque há
projetos diferentes, mas hoje eles não se mostram.
Quanto dessa situação é novidade por causa do atual momento social e econômico do país?
Essa situação existe há muito tempo, mas, na medida em que há um dado
novo, e esse dado novo obriga a uma expansão da capacidade produtiva, é
hora de inovar com qualidade, e não fazer um simples aumento
quantitativo da capacidade produtiva. Isso porque, quando se dobra a
capacidade produtiva de um determinado sistema, o impacto indesejável do
ponto de vista ambiental, cultural etc. pode até quintuplicar.
Desse ponto de vista, o senhor diria que o país está pronto para erradicar a miséria?
Do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de conhecimento científico-tecnológico, o país não está pronto de jeito nenhum.
E para absorver a chamada nova classe média?
Também não. Esse processo terá consequências ambientais e sociais. Acaba
desfazendo de um lado o que faz do outro. Os programas compensatórios,
como o Bolsa Família, são um caso típico. Sem gerar oportunidade de
trabalho e renda para essas pessoas, não se está fazendo muita coisa.
Reportagem da Folha na sexta mostrou que a "porta de saída" do Bolsa
Família terá, neste ano, o menor peso no Orçamento desde a criação do
programa.
É um absurdo. O cara vai continuar excluído. Não vai passar fome, mas
também não vai pertencer à sociedade, porque não terá um papel social.
Estamos falando em criar oportunidades de trabalho e renda, o que não é
necessariamente emprego.
Como assim?
Não é emprego formal, com carteira assinada. A economia cresce, mas não
gera emprego. Aí entram a economia solidária e a tecnologia social, por
exemplo. Ao dizer isso, não é preciso pensar em uma sociedade diferente
do capitalismo. Podemos falar, de uma maneira pragmática, que a economia
solidária e a tecnologia social são condições para tornar efetivo o
dinheiro que o governo gasta para tirar as pessoas da miséria. É preciso
dar condições para que essas pessoas se sustentem, pois, do contrário,
provavelmente vão voltar para a miséria. Dar dinheiro por programas
compensatórios é apenas a pontinha de um iceberg. Claro que tem sua
importância, mas como vamos cuidar do resto?
Leia a entrevista completa na Folha
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